Embora tenha um ecossistema privado de inovação aquecido, segundo o Índice Global de Inovação, ranking publicado anualmente pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual, o Brasil ocupa a posição de número 49 neste assunto, atrás de nações com PIB (Produto Interno Bruto) menores, como Vietnã e Hungria.
Apesar disso, há algumas iniciativas que inserem o país no cenário global de governo digital, sobretudo quando se trata de blockchain. Em janeiro, por exemplo, o governo federal passou a emitir uma nova versão de RG, denominada de CIN (Carteira de Identidade Nacional), por meio de um sistema que é todo baseado no blockchain.
Essa foi a solução encontrada para acabar com uma disparidade de numeração que existia nas emissões feitas pelos diferentes Estados, o que unificou o processo em todo o país. A mudança foi liderada pelo Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados), órgão ligado ao Ministério da Fazenda, que também criou o sistema bConnect, outra plataforma fundamentada em blockchain para fazer a integração aduaneira entre os países do Mercosul.
Marco Túlio da Silva, gerente de produtos digitais do Serpro, destaca que o sistema foi criado internamente no Brasil como uma solução para empresas que, por histórico ou volume de importações, têm um desembaraço aduaneiro mais rápido, conforme regra da Receita Federal. Antes dele, as atualizações de importações entre países eram feitas por e-mail, um procedimento que não acontecia em tempo real.
“É uma rede que interliga aduanas de vizinhos como Argentina, Paraguai e Uruguai, em que os operadores econômicos trocam informações com autorização. Inclusive, esse projeto também já foi apresentado para o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), e outros países mostraram interesse em conhecer o funcionamento”, conta ele.
Dentro da empresa pública, a discussão agora é como aproveitar o sistema em outros usos, como na Declaração Eletrônica de Bens do Viajante (e-DBV), documento preenchido pelos turistas sobre os itens que estão levando ou trazendo durante uma viagem.
“Um sistema como esse já vinha sendo discutido há muito tempo, com propostas de outros países, mas, no modelo tradicional, teria de ser desenvolvido por um único governo que manteria toda a base de dados”, explica Túlio. “Com o blockchain isso muda, já que é uma solução de código aberto, o que facilita para auditoria e controle de todos os países. Além disso, os dados não ficam centralizados, mas são distribuídos, e cada país tem uma cópia deles”, completa.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é outro agente público entusiasta do blockchain, mantendo, inclusive, um laboratório para testes da tecnologia. Junto do Tribunal de Contas da União (TCU), a instituição lançou a Rede Blockchain Brasil, que tem projeto-piloto previsto para começar a rodar em agosto, com o objetivo de se tornar a principal blockchain de aplicações de interesse público, com foco na promoção da transparência dos gastos públicos.
O projeto nasceu em 2022, depois da assinatura de um acordo de cooperação entre as duas entidades. Empresas parceiras, como Dataprev (Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) já estão cadastradas para atuarem como membros validadores da rede, apelidada como RBB.
Além disso, em março, o BNDES também foi aprovado como parte da Fundação Hyperledger para compor um grupo de trabalho que visa criar soluções para o setor financeiro. Essa equipe é formada por IBM, Mastercard, Accenture e outras grandes empresas globais.
País pode ir além
Embora exista uma agenda de inovação sendo executada em âmbito federal, nas esferas estaduais e municipais a história muda um pouco. Isso porque são poucos os casos em que as prefeituras e governos estaduais têm projetos de blockchain em funcionamento.
A advogada Priscilla Menezes, consultora de inovação do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) lembra do denominado projeto SOL (Solução Online de Licitação), criado em uma parceria dos Estados da Bahia e do Rio Grande do Norte. O objetivo foi lançar um sistema de código aberto para garantir transparência e audibilidade nos processos de concorrência.
“É um projeto que recebeu financiamento do Banco Mundial e que pode servir de modelo para que outros estados implementem. Temos potencialidades de blockchain para variadas áreas dos governos, principalmente quando olhamos para a experiência estrangeira, com países que ocupam os primeiros lugares nos rankings de inovação”, avalia Menezes.
Por outro lado, Lutiano Silva, líder de governo digital da consultoria de gestão pública Ibap Brasil, pontua que essas outras esferas do Poder Executivo ainda estão olhando para questões mais antigas. Enquanto alguns Estados ainda caminham para se adequar à LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), promulgada em 2018, existem prefeituras que nem sequer estão ajustadas à Lei da Transparência, de 2011, que pede que os órgãos tenham páginas virtuais para a publicação de informações de interesse público.
“Temos mais de 5 mil cidades no Brasil, e metade delas tem menos de 50 mil habitantes, que, na maioria dos casos, nem cumprem a Lei da Transparência. Infelizmente, há uma diferença de maturidade muito grande não só na questão de governo digital, mas de inovação, de maneira geral”, comenta Silva, que já executou projetos com entes de todas as esferas do poder público.
Os especialistas, no entanto, corroboram que há um movimento de legislações para inovação que podem favorecer o papel do Brasil no cenário global. Esses avanços seriam benéficos não só para a gestão pública, mas também para a população, que vai poder acessar mais serviços e, de certa forma, ter controle sobre seus dados.
“Temos projetos de lei em andamento que falam que o setor público deve adotar a tecnologia de blockchain como base para a gestão e armazenamento de dados, e acho que isso posiciona o Brasil de uma maneira favorável no cenário global como um país seguro, amigo da tecnologia e apto a receber investimento estrangeiro”, projeta Menezes, do ITS Rio.