O panorama dos pagamentos digitais está em constante evolução, e a ascensão das stablecoins — criptomoedas atreladas ao valor de ativos estáveis, notavelmente o dólar americano, e por isso apelidadas de “dólar digital” — representa uma das principais forças de transformação. Longe de serem vistas como uma ameaça existencial pelas gigantes do setor de pagamentos, as stablecoins estão sendo encaradas como um elemento de complementariedade e um catalisador para uma concorrência mais acirrada e democrática no ecossistema financeiro.
Essa perspectiva foi o ponto central de um debate no evento “Especial Dólar Digital”, organizado pelo Future of Moneyda EXAME, que reuniu executivos de peso de empresas como PayPal, Visa e Mastercard. A principal questão levantada foi se as stablecoins configuram um risco direto aos modelos de negócio estabelecidos dessas instituições. A resposta, de forma unânime e estratégica, foi negativa.
Complementaridade Acima da Concorrência
Para Brunno Saura, diretor-geral do PayPal no Brasil, a chave está na complementaridade. “Eles [stablecoins e meios de pagamento tradicionais] se complementam. Eles criam um espaço para diferentes tipos de digitalização e utilização das moedas,” afirmou Saura. O foco, segundo ele, deve ser a democratização e a garantia de opções para o usuário final. Empresas de pagamento e a tecnologia stablecoin compartilham o objetivo fundamental de criar um ambiente saudável e eficiente para consumidores e empresas, onde a coexistência de diferentes métodos enriquece o ecossistema.
Essa visão é ecoada por Leonardo Linares, vice-presidente sênior de soluções para clientes na Mastercard Brasil. Linares destacou que criptoativos e stablecoins estão ocupando espaços de transação que, de outra forma, permaneceriam sem a digitalização adequada. Ele sugere que cada meio de pagamento se posicionará onde oferecer os melhores benefícios e capacidades para um caso de uso específico. A escolha final, nesse cenário, caberá ao usuário, o que naturalmente força o ecossistema a ser bastante complementar, onde a competição se dá pela excelência na entrega para o caso de uso.
A Lacuna de Uso no Varejo e a Fricção da Experiência
Apesar do otimismo em relação à coexistência, a executiva Antônia Souza, diretora de cripto da Visa para América Latina e Caribe, trouxe uma análise pragmática sobre o uso atual das stablecoins. Ela ressaltou que a maior parte da movimentação de grandes montantes em stablecoins ocorre no mercado institucional. A grande oportunidade, e a lacunaa ser preenchida, reside em levar essa tecnologia para o usuário final, para o consumidor comum e o varejo.
A barreira para essa adoção em massa é clara: a experiência de utilizar a cripto como meio de pagamento “não é a mais fácil”. É neste ponto que as gigantes de pagamento veem uma oportunidade de sinergia. A Visa, por exemplo, está focada em conectar seus cartões — um meio de pagamento globalmente aceito e familiar — às carteiras digitais que contêm stablecoins.
Essa conexão tem o potencial de diminuir drasticamente a fricção para o usuário. Ao facilitar o gasto de stablecoins no varejo, utilizando a infraestrutura de pagamentos já estabelecida (os cartões e a rede de bandeiras), a adesão de usuários tende a aumentar. A expectativa é que, à medida que mais programas de cartões conectados a stablecoins sejam emitidos massivamente e globalmente, o volume de transações em stablecoin no varejo crescerá significativamente.
O Poder da Escolha e o Futuro Democrático
O consenso entre as líderes de pagamento é que o avanço do “dólar digital” não representa uma eliminação, mas sim um aumento da concorrência e da diversidade de opções. O mercado de pagamentos caminha para um futuro onde a escolha do usuário será o fator determinante.
Seja por meio do Pix, da infraestrutura tradicional de cartões, ou das stablecoins operando em blockchain, o resultado final é um ambiente financeiro mais democratizado, onde a inovação é incentivada e os benefícios da digitalização de moedas se tornam acessíveis a um público mais amplo. O “dólar digital” atua, portanto, como uma força evolutiva, impulsionando a próxima fase da eficiência e inclusão nos pagamentos, forçando todos os players a otimizar suas soluções para atender a casos de uso específicos com a máxima competência.