O Grão-Ducado de Luxemburgo está firmando-se como protagonista na nova era das finanças digitais ao realizar, em 16 de junho, a maior operação de tokenização de títulos públicos da Europa: nada menos que 50 milhões de euros, o equivalente a cerca de R$ 320 milhões, foram convertidos em tokens em uma emissão inédita conduzida em parceria com o HSBC. Utilizando a plataforma Orion – um sistema de registro distribuído (DLT) desenvolvido pelo banco e baseado no território luxemburguês –, o governo criou um modelo de certificação digital para seus Títulos do Tesouro. O movimento representa mais do que um experimento tecnológico: é um passo estratégico em direção à criação de um “marco tecnológico” no financiamento soberano moderno, com potencial de transformar a forma como os investidores acessam os papéis emitidos pelo Estado.
O processo de tokenização, que converteu certificados físicos em registros digitais, traz uma série de benefícios operacionais significativos. O tempo de processamento das emissões e liquidações foi reduzido, enquanto a segurança dos títulos foi reforçada graças ao registro imutável e transparente provido pela tecnologia blockchain. A eficiência operacional também ganhou destaque, com menor burocracia e maior confiança dos investidores, que já demonstraram receptividade positiva ao modelo. Além disso, há uma ambição clara de ampliar ainda mais esse modelo: o governo pretende colher feedbacks e avaliações sobre o produto digital com vistas à possível emissão futura de títulos soberanos totalmente nativos — ou seja, criados digitalmente desde o início, sem necessidade sequer de certificados físicos intermediários.
A tokenização de ativos soberanos, embora ainda inicial, está ganhando força na Europa. Luxemburgo não é o primeiro país a iniciar essa transição, mas se destaca ao liderar a tokenização de maior valor já realizada diretamente por um governo. Em julho de 2024, a Eslovênia já havia emitido cerca de 30 milhões de euros em papéis tokenizados, porém, com volume inferior ao de Luxemburgo. Mais amplamente, os bancos e gestores privados – como a BlackRock – já vinham explorando a tokenização de fundos e ativos de renda fixa, ampliando a oferta de produtos financeiros digitais em escala global. A iniciativa luxemburguesa, contudo, redefiniu o cenário ao demonstrar que é possível para um governo, e não apenas para o setor privado, adotar soluções de DLT em seus mecanismos de financiamento público.
Por que esse movimento tem impacto? Em primeiro lugar, a tokenização representa mais do que digitalização: é uma reformulação do processo de emissão e negociação de dívidas soberanas. Ela pode abrir novas janelas de liquidez, permitir rituais de recompra (buybacks) mais eficientes e salvaguardar a rastreabilidade de cada unidade de débito. Além disso, ao gerir volumes expressivos em plataformas reguladas de blockchain, os estados têm a oportunidade de monitorar fluxos financeiros com maior precisão e, simultaneamente, reduzir custos com intermediários como custodiantes e haberdashers de papel. No caso de Luxemburgo, com forte tradição financeira e ambiente regulatório avançado para criptoativos, o uso de tokens soberanos reforça metas de inovação e inclusão digital ao redor do euro.
Adiante, há diversas frentes que se abrem a partir desse pioneirismo. Uma delas é a possibilidade de criar títulos digitais “nativos”, concebidos diretamente em ambiente digital, eliminando completamente o suporte físico, e abrindo potencial para emissão fracionada ou tokenizada em micro-quantidades. Isso poderia democratizar o acesso ao financiamento público, permitindo que indivíduos ou pequenas empresas se tornem investidores de títulos do governo com aportes mínimos, atraindo novos perfis para o mercado de renda fixa. Também se discute a integração desses tokens em infraestruturas de mercado mais amplas, como bolsas digitais ou plataformas de negociação em tempo real, trazendo velocidade e flexibilização inéditas.
Logicamente, desafios ainda persistem. A regulação precisa evoluir para garantir supervisão eficaz, controle de riscos sistêmicos e proteção dos investidores, evitando problema de volatilidade ou falhas tecnológicas. Além disso, a infraestrutura de suporte — desde chaves criptográficas até redes de distribuição — deve ser robusta e acessível a uma gama maior de instituições e cidadãos. A educação financeira também será peça-chave para que os investidores compreendam o funcionamento e riscos desse novo formato, evitando mal-entendidos e fortalecendo a confiança no sistema digital. Por fim, há a questão da interoperabilidade: garantir que os tokens emitidos por Luxemburgo possam interagir com sistemas financeiros de outros países, permitindo negociações transfronteiriças sem atrito.
O passo dado por Luxemburgo — em colaboração com o HSBC — sinaliza que a tokenização de dívida pública é mais do que uma promessa: é uma realidade em construção. O lançamento de 50 milhões de euros em títulos do Tesouro via blockchain não é apenas um salto tecnológico, mas o indício de um novo paradigma financeiro. À medida que governos e reguladores observam esse ecossistema, torna-se mais plausível imaginar que outras nações seguirão o caminho, transformando a emissão de dívida soberana em algo mais eficiente, seguro, transparente e democrático. Se tudo der certo, nos próximos anos, os tokens de dívida pública poderão se tornar tão comuns quanto uma transferência bancária — e o dinheiro em papel seguirá perdendo terreno, até mesmo nos mercados tradicionalmente conservadores.